5 de março de 2009

O outro lado do mundo




- Ao que parece foi apenas um susto, o coração decidiu começar a bater um pouco depressa demais sem pedir autorização, mas rapidamente se arrependeu - disse a enfermeira, num tom tranquilizante enquanto pensava na sorte que este senhor havia tido.
Por momentos a sala de reanimação ficou vazia, mas um vazio expectante, que fica até ao momento em que por ali entra alguém a precisar mesmo a sério, mas que muitas das vezes não se apercebe da gravidade da sua situação.
Toca o telefone. A enfermeira atende já adivinhar o que se vai seguir, quando do outro lado...
- Estou Rute, é o Miguel, triei agora para ai uma senhora que não me parece muito bem, com uma história suspeita de um mal-estar torácico, acompanhado de dispneia súbita...
- Ok, acho que já estou a ouvir a maca a chegar, até já...
Rapidamente todos se prepararam para a receber, luvas, monitor, oxigénio...

... Do outro lado era assim...

Começo a sentir dificuldade em ficar acordada, diria mais que isso, diria que nem adormecida me consigo manter.
Apercebo-me que saio agora de uma ambulância.
Vou deitada numa maca e levam-me cada vez mais depressa para dentro de uma sala cheia de visores, fios e uma variedade que equipamentos esquisitos, mas ninguém me explica nada.
Eu tento falar mas ninguém me ouve...
Tento agora com todas as minhas forças manter os olhos abertos e perguntar o que se passa, mas nem os lábios se mexem, nem os olhos se abrem mais. Procuro esticar a mão e dizer que está tudo bem, mas também não consigo!
Num repende, juntam-se Enfermeiros, Médicos e Auxiliares à minha volta.
Ligam uma série de fios do meu peito a um dos tais visores, suponho que mostre o bater do meu coração, mas, alguma coisa não está bem.
Custa-me a respirar cada vez mais, tanto que começo a perder a necessidade de o fazer...
"Está em paragem" - oiço o Enfermeiro dizer com uma calma serena.
Parece que imediatamente todos à minha volta encarnam um papel com falas e acções sequenciais.
Neste momento consigo ter uma visão superior de tudo o que se passa à minha volta. Pior que isso, vejo-me a mim despojada de qualquer vontade, deitada naquela maca de hospital, com um rosto amorfo, agora isento de tudo aquilo que viu nestes 52 anos.
Uma das enfermeiras espeta-me uma agulha no braço esquerdo, mas não dói, estranho.
Alguém começa a fazer pressão no meu peito de um modo sequencial, engraçado penso eu, afinal de contas, eu estou aqui em cima e estou bem, não me vêm?! Já me podem levar para casa.
Agora vejo que alguém me estica uma corda, mas eu simplesmente ignoro-a. Porque é que a vou agarrar? Sinto-me bem assim... sem nada sentir.
Lembro agora dos castelos de areia que construía quando tinha 5 anos, sempre carregada de fé utópica que eles iriam resistir à próxima onda de espuma que ali chegasse.
Quero continuar a lembrar, mas eles à minha volta não deixam!
Ignoro o puxar deles, e lembro-me do jantar que dei ontem para a minha filha e a família do meu futuro genro. Foi uma festa autêntica, vi a felicidade nos olhos da minha filha e o sentimento de dever cumprido do meu marido.
Ela vai-se casar para a semana, está tudo pronto e eu não vejo a altura de ver a minha filha subir ao altar com aquele vestido branco pérola.
Agora sim, vamos ter oportunidade de gozar a vida, viajar por aí, sermos chamados de avós e...
Mas espera... estou ansiosa... com uma ansiedade diferente.
Fez-se click, e apercebo-me que tudo isso começa a ser uma imagem fugaz.
Sinto-me a asfixiar, não de ar, mas futuro perdido. Tudo o que planeava vejo fugir e nada posso fazer para mudar.
Mandem-me a corda novamente, eu agarro!
Mandem-me a corda, por favor! Rápido!!!
Então?
Não estou a acreditar nisto, não pode ser! Ajudem-me, não me estão a ouvir?!
Ajudem-me!...
Aaahhhhhhhh!

2 comentários:

Cephas84Zoth disse...

É dos poucos comentários que fiz no nosso blog mas desta vez fui incapaz de resistir.

Fantástica a estranha visão do filme Cidade dos Anjos ao ler este post que podia muito bem ser a descrição de uma das cenas iniciais mas que consegue ser mais profundo ainda!
Sem dúvida o "nosso poeta".
Granda Zap lol

P.S. - Este post seria uma reflexão nível 20 em qualquer estágio de urgência! Não queres voltar à faculdade?

Anónimo disse...

Fantastico, e concordo com o cephas, qualquer M.J ou R.K ia adorrar uma reflexão destas em estagio.lol